Encerra esta terceira exposição o breve ciclo dedicado à arte portuguesa deste século. Curiosa situação esta: fazer terminar uma panorâmica histórica da arte contemporânea nacional mostrando, não os últimos mas os primeiros exemplos da sua produção. Situação que poderemos tornar mais evidentemente simbólica se, por exemplo, percebermos de que modo podemos tomar hoje, como obra mais actual do conjunto escolhido, a mais antiga delas todas: a de Amadeo de Souza Cardoso. O que não implica a aceitação de uma história construída através de rupturas sucessivas mas uma história de derivas, em relação às quais nos aproximamos ou afastamos, não forçados pela cronologia nem por qualquer lógica de filiação mais impelidos pelo desejo, pela curiosidade, pela razão. A sensibilidade contemporânea pode desenvolver-se sobre uma múltipla série de registos (que tendem a não ser de exclusão) que procuram no passado referência, indícios, valores que pontualmente se relacionem com as inquietações múltiplas do presente. O que nos aproxima da vivência e da pintura de Amadeo, emigrado em Paris ou isolado no Minho, é um sentido de “vertigem” que ele convoca de modo álacre e veloz, é a alegria e o ruído provocados pela cor e pelo estilhaçar de um real sem espessura e pela criação de uma densidade plástica e vivencial. Acontece que essa vertigem pode também / porém transformar-se em imagem termina; dar corpo a um intenso sentido de melancolia e conduzir-nos a uma simultânea vivência de crença e desespero. O que nos poderia fazer incluir, sem contradição, no leque dos artistas aqui reunidos, a pintura quase literária de António Carneiro.
Em Amadeo e Carneiro podemos encontrar suficientes motivos de interesse para a formulação das mais actuais questões da nossa existência e da nossa criatividade. Mas sobre as certezas ou desesperos de ambos seríamos sempre obrigados a lançar um olhar distante, o olhar de quem já não poderá viver inocentemente nem relacionar-se com o mundo de modo inocente.
Assim vos temos convidado a olhar, nestas 3 exposições, as obras que em conjunturas sucessivas foram construindo as imagens da arte portuguesa deste século: e a distância quase cínica que delas nos pode afastar não quebra o fascínio e a paixão, por vezes unicamente visual e sensual, por vezes meramente poético e literário que a elas nos liga. Trata-se de aprender a olhar oitenta anos de produções artísticas procurando construir um caminho através das referências mais fortes desse longo período, relacioná-las entre si e connosco. Tenhamos em conta o facto de considerarmos que aos artistas que se podem apresentar como mais interessantes expressões destas sucessivas conjunturas são os que desenvolvem uma coincidência activa como entre o registo íntimo da criação artísticas e o tempo contemporâneo. São eles que definem as linhas mais produtivas da criação, os valores estéticos e poéticos mais ricos de cada época.
ANOS 10
A “revolução” do final do século foi silenciosa e literária: o país sentia-se agonizar e os homens que melhor interpretavam essa angústia, esse sentimento de catástrofe inelutável foram os escritores. Os homens de acção, sonhavam com a utopia republicana; os pintores, esses, continuavam a olhar a natureza e a sociedade com uma tranquilidade positivista ou uma futilidade folclórica. Exceptuemos, entre outros, Columbano e António Carneiro que para o séc. XX trazem as imagens desse sentido de perdição e sonho nos rostos fantásticos dos retratados ou nas marinhas cor de malva, desertas e brumosas.
A resposta a esse peso da derrota desenvolveu-se em simultâneo nos campos da literatura e das artes plásticas. O complexo movimento cultural que abalou Portugal dos anos 10, o Futurismo afastou os jovens criadores dos saudosismos de “A Águia” e colocou o país na rota das formulações de questões de arte contemporânea internacional e conseguiu uma momentânea aliança entre a vanguarda das letras e das artes. Os complexos meandros das relações entre o casal Delaunay, Amadeo, Santa-Rita, Almada, Pessoa, concretizam simbolicamente esta situação privilegiada e que em breve desapareceria.
ANOS 20
Amadeo morreu em 1918 nas vésperas de regressar a Paris; no mesmo ano morreu Santa-Rita. Este queimou ou mandou queimar as suas obras; as daquele ficaram quase desconhecidas até finais de 50. Eclipse que seria fatal para a ruptura iniciada. O seu exemplo e a notícia dos desenvolvimentos internacionais motivaram, contudo, algumas transformações no panorama nacional. Mas não se trata de entender as novas linguagens e participar nelas; antes de um aproveitamento elegante e superficial das propostas vanguardistas de algumas e a criação de um clima de modernização das formas e temas do nosso tardio naturalismo. Assim se desenvolve “ modernismo” português, arrastando ao longo dos anos 20, mal assimiladas lições modernas, de novo alheio e hostil ao que se passava nos circuitos internacionais.
ANOS 30
Os anos 30, por múltilos motivos, alteraram significativamente a situação. A obra de dois ou três pintores (Alvarez, Eloy, Júlio) pode iniciar naquela década um discurso plástico imbuído de uma estranha energia e vigor expressionista (por razões diversas) que os coloca por razões diversas à margem da produção da época. Destaquemos, em Alvarez, o carácter irreal das suas obras, onde personagens secos e doloridos, loucos e vazios, se destacam em pobres paisagens urbana sou na grande aridez de uma paisagem; destaquemos Mário Eloy, cuja dimensão de irrealidade se acentuará até à loucura: anotemos a rugosidade das matérias com que pinta, o valor simbólico das cores, apodrecidas como que por uma doença, as composições fechadas sobre si mesmas ou esquemáticas, como qualquer coisa morta. Imagens de duas personalidades que cultivam o isolamento como “fuga”. No capítulo das relações internacionais, a única ponte produtiva de ligação às vanguardas europeias resultou da relação estabelecida através de Vieira da Silva e Arpad Szénes. As suas breves estadias entre nós, mostras quase privadas de trabalhos e alguns textos críticos forneceram às suas obras uma dimensão quase tão mítica como às de Amadeo. Os processos de construção / desconstrução lumínica e compositiva de Vieira, a delicadeza dos seus valores cromáticos proporcionaram valores de abstracção desconhecidos na produção nacional que muita importância viriam a ter para a pintora dos anos 50.
A política cultural também se alterou: António Ferro, antigo futurista, cria o SNP/SNI. Apresentando-se como um formidável instrumento de propaganda do Regime salazarista pretendeu (e alcançou) mobilizar forte componente do discurso plástico: atraindo os modernistas dos anos anteriores, integrando artistas das novas gerações; promovendo Salões, Concursos, Prémios e Organizando representações a Freiras e Certames internacionais. O coroamento desta actividade eufórica dos primeiros anos do Regime pode considerar-se a Exposição do Mundo Português, no ano de 1940, em Lisboa.
ANOS 40 E 50
Assim se anunciava uma década que seria, afinal, percorrida por grandes transformações no ambiente artístico nacional, ou seja, pela formulação de novas linguagens artísticas que, em certa medida, definiriam também o sentido das correntes da próxima década de 50.
Logo em 1940, António Pedro e António Dacosta mostraram, numa exposição, obras que se opunham ideológica e formalmente à estética e remetiam directamente para linguagem e o imaginário surrealistas que Pedro conhecera em França. Mas a partida deste para Londres (até 1947) adiaria a formação de um movimento de intervenção organizado; e o grupo, uma vez formado, rapidamente se cindiu.
Pelo que importa, sobretudo, assinalar o percurso de Dacosta, o mais denso de todos eles. Espírito torturado por um sentido de luta interior cuja formulação quase sempre se transforma numa ruptura física que a realidade plástica ilustra de forma dramática, Dacosta transporta para as telas essa sublime solidão que é a das suas ilhas açoreanas e dos homens face ao oceano, face ás suas próprias monstruosidades e orgulhos. Abandonando a pintura no inicio de 50 e retomando-a mais de duas décadas depois, Dacosta mantém-se, hoje ainda, como assinalamos no anterior catálogo um dos valores mais fortes da pintura portuguesa actua. A ruptura do tecido social e político do regime teve significativa expressão após o final da II Guerra. Muitas vezes em coordenação com as acções mais ousadas da oposição política, gerou-se uma actividade artística notória que foi tirando poder de iniciativa ao Governo e seus órgãos. Por um lado, temos a literatura neorrealista e as suas revistas e jornais; por outro, as Exposições Gerais de Artes Plásticas, iniciadas em 1946 na SNBA, em Lisboa, e organizadas durante dez anos.
Sucessivas divisões, de diversa ordem, acabaram por afastar destas manifestações surrealista e outros, e a face mais visível destas ecléticas exposições acabou por ser a do neorrealismo pictórico. Imbuídos de um ideal que entendia que a liberdade era colectiva antes de ser individual e que o valor poético e estético da obra estava dependente da correcção de sentido político e social do seu conteúdo, estes pintores, influenciados pelos moralistas mexicanos, propunham uma arte social e política. Júlio Pomar, com o vigor escultórico das figuras, o sentido rítmico das composições e a qualidade plástica da sua paleta é o grande nome dessa corrente que, ao longo dos anos 50, acabará por constituir-se como travão ideológico e formal ao desenvolvimento das “novas formas” da arte. Dentre essas “novas” propostas notemos o surgimento (entre 43 e 44) de um movimento que, a partir do Porto (depois através da emigração parisiense de Nadir fonso), rompeu, de facto com todo o compromisso do “modernismo” nacional: Fernando Lanhas, em torno de uma série de exposições estudantis e regionais (“ dos Independentes”) mostrou as primeiras obras abstractas geométricas realizadas entre nós e as primeiras do género na segunda vaga geométrica europeia. Irredutíveis à palavra os enigmáticos sinais que evoluem ou se afirmam estaticamente nos quadros de Lanhas (pintados em cores pétreas) tornam-se imagem de um profundo sentido de equilíbrio entre a natureza e o homem, de uma dimensão expressiva que procura o Cosmos como limite. O debate instaurar-se-á entre cada um destes elementos da arte da década, de um modo nem sempre enriquecedor mas quase sempre radical: primeiro, entre neorrealistas e surrealistas; depois, entre figurativos e abstractos, assim se prolongando ao longo dos anos 50. Um dos diálogos mais profícuos entre essas tendências realizou-se no interior do trabalho de Júlio Resende, que soube articular evidentes valores abstractos em obras de não menos evidente intenção social, alcançando, então uma imensa qualidade sensorial e rigor compositivo; emblemas de uma vigorosa afirmação de dignidade humana.
O surrealismo iniciou também uma interessante exploração de valores abstractos não-geométricos ao longo dessa década: lembremos Césariny, D’Assumpção, entre outros.
ANOS 60
No entanto, só os anos 60 trariam a desejada ruptura com a situação viciosa criada pela oposição entre os valores atrás apontados. E então se instauraram, por sua vez, as linhas de um entendimento estético que iria caracterizar as experiências das décadas seguintes. Assistiu-se, na rapidez da primeira metade da década, à redefinição dos parâmetros através dos quais se estabelecia a relação do artista com o mundo e se estabeleceriam os códigos de representação plástica da sua visão.
Globalmente, pode falar-se de uma redefinição das direcções do olhar artístico que se deslocou da intenção social emprestada aos elementos da representação do real, para a intenção individual ou para a exposição desses mesmos elementos – isto, se pensarmos na deslocação verificada no interior dos códigos figurativos a partir do abandono do entendimento neo-realista; que se deslocou da intenção universal de “modelos” atribuída aos elementos plásticos puros, para a expressão desses elementos – isto se pensarmos na deslocação realizada no interior dos códigos abstractos a partir da ultrapassagem dos entendimentos geométricos.
Mas não podemos também esquecer, como elemento inovador essencial na caracterização plástica da época, o cruzamento destes diferentes registos no tempo e, por vezes, no espaço de uma mesma obra.
Esta redefinição da direcção do olhar, garantida pela recuperação dos diferentes modos surrealistas e em referência às transformações estéticas europeias adquiridas na emigração, garantiu um novo estatuto aos elementos do real convocados para a obra de arte (a figura, o objecto, o signo, o natural.) Encontramo-nos pois num período que ergue a própria obra como objectivo da sua prática: o que provoca uma evidente erosão do tema, enquanto explicitação ilustrativa, e o reforço do seu papel enquanto expressão de uma subjectividade ou de uma neutralidade radicais. Isto leva, naturalmente, a uma transformação da conduta e dos códigos plásticos (o gesto, a matéria, a luz-cor, o espaço), agora geridos enquanto elementos de valor primordialmente material, sem referência a qualidades extra-picturais ou procurando integrá-las totalmente no escrito campo da realidade plástica. Evolui-se assim da contenção de efeitos e/ou da clarificação ilustrativa das representações para a intensificação da presença plástica de elementos apresentados em esquemas de concentração, dispersão ou obstinação.
Os finais dos anos cinquenta marcavam já as linhas de uma alteração de sensibilidade e modos de expressão plástica. A saber: o vazio das manifestações colectivas de referência neo-realista; uma representação maioritariamente abstracta não-geométrica na Bienal de S. Paulo em 1959; o prémio atribuído nesse mesmo ano pelo SNI ao pintor gestual Artur Bual; a emigração (entre 1957 e 1958) de Lourdes Castro, René Bértholo Escada e João Vieira para Paris, Costa Pinheiro para Munique, etc.
Um grupo de alguns emigrantes (R. Bértholo, L. Castro, J. Vieira e Gonçalo Duarte) formou em Paris, com nomes que viriam depois a alcançar notoriedade internacional (Jan Voss, Christo) o grupo “KWY”, que expôs em 1960, em Lisboa, a inovação das mais recentes propostas europeias desenvolvidas então em torno de entendimentos gestuais e matéricos abstractos e “informalistas”. No entanto, a data que tem sido marcada, na nossa historiografia da arte, como de ruptura com a década anterior, é 1961, ano da II Exposição da Fundação Calouste Gulbenkian onde se manifestam de modo notório e são consagradas pelo júri as linhas da nova sensibilidade.
Duas obras, marcam então, simbolicamente, essa viragem: as de Joaquim Rodrigo e Paula Rego.
O primeiro, ultrapassa as soluções formais geométricas – onde vinha desenvolvendo uma intensa pesquisa das relações matemáticas entre natural e universal – iniciando a aplicação de metodologias mais intuitivas a composições igualmente rigorosas. Ligando-se à figuração, apresenta os elementos de um mundo simultaneamente social e subjectivo, até fazer prevalecer o registo de uma memória individual tomada como modelo do absoluto.
Também Paula Rego, integra uma atenção inicial para o que podem ainda ser questões de um mundo socializado. Atenção logo pervertida, em articulação com a tradição de temática e sensibilidade satírica e surrealista e uma composição por concentração/dispersão que assimila, na figuração, soluções abstractas não geométricas.
Menez, dispõe a partir de referentes abstractos, integradores de uma luz que convoca o natural como paisagem e como espaço de cena, objectos e acontecimentos que sobre os nossos olhos se desmesuram ou vacilam. Na sua pintura repousa a outra ponta do subjectivismo desta década.
Mas nestes anos, as artes aproximam-se também de um outro registo que tende a fazer um levantamento dos elementos da realidade, tratando-os como séries de objectos. Esta permanência da figura e do objecto, enquanto referentes básicos de diferentes correntes da época, não duplica a realidade neo-realista: porque os lugares são fundamentalmente plásticos e não surgem enquanto referências a realidades exteriores à obra de arte e também, porque se vai perdendo a simplicidade do olhar para se construir lentamente o olhar ou da exaltação poética.
Aqui caberia referir a qualidade das relações estabelecida com a linguagem internacional da arte Pop para que exemplarmente remete a obra de António Palolo.
Desmonta-se e recompõe-se a materialidade do objecto e da figura, através de jogos de montagem-assemblage que se prolongam até aos anos setenta e de onde resultam, ora os recortes de Escada, ora “brinquedos” de memória “dádá” (Bértholo, Costa Pinheiro) ou referência erótica (esculturas femininas de João Cutileiro) ora líricas silhuetas (Lourdes Castro) e objectos de sentido misterioso e absurdo (António Areal) de reflexão metafísica (Noronha da Costa).
Abandonada a valorização social e política dos elementos da realidade, esta acaba por poder ganhar uma forte carga simbólica, acentuada pela simplificação formal das figuras, pelo forçar dos valore gráficos de bidimensionalidade, pelo rigor de composições sobres um ou sucessivos eixos de simetria (série dos Reis de Portugal, Costa Pinheiro, 1966). António Sena acentuará de modo muito mais forte, a qualidade espontânea incontrolável/irrepetível do gesto gráfico, que apenas marca ritmos sobre papéis colados e rasgados, telas, simulações de registos de memórias escritas. Será também a partir de um isolamento dos sinais pictográficos que Ângelo de Sousa organiza, na terceira dimensão (fitas de aço móveis), ou na tela, um alfabeto de sinais dispersos ou lúcidos.
Do ponto de vista sociológico, o fim da década desenha uma rápida modificação da relação e da produção e dos produtores e dos produtores artísticos com o mercado e com o público. Tal modificação, possibilitada pela aceleração das transformações na sociedade portuguesa no final do período salazarista tornou o investimento em arte, ou o mecenato artístico, numa actividade de alto interesse económico e socialmente prestigiante criando um activo, mas restrito e pouco estabilizado mercado de arte e favorecendo um boom especulativo de preços e nomes que iria soçobrar logo a seguir ao 25 de Abril. Puderam também os jornais e revistas e algumas edições se arte ou o organismo artísticos como a SNBA acompanhar de modo arguto e informado, ou apenas a reboque da euforia geral o movimento, alcançando capacidade de intervenção nos diferentes níveis públicos e ultrapassando as últimas capacidades de iniciativa dos organismos estatais. Finalmente reafirmou-se a marca da circulação internacional deste período e a possibilidade de permanência (com bolsas da Gulbenkian ou em aventura individual) de artistas nos centros difusores dos mais produtivos modelos da arte ocidental.
Coincidência com as questões e linguagens contemporâneas que não mais cessará de se aprofundar nos artistas e correntes mais inovadoras da arte portuguesa.
João Pinharanda