Fotografias de José Manuel Rodrigues

Exposição de José Manuel Rodrigues.

m. margarida medeiros

Avelar, 23 de Agosto de 1997

As três imagens da epifania

O trabalho de José Manuel Rodrigues, desde que tenho a oportunidade de o seguir em Portugal, apresenta para mim uma característica particular: abordando discretamente as pessoas, parece contudo debruçar-se especificamente sobre a sensorialidade humana. No conjunto dos seus trabalhos tendo dado conta de um gosto intenso por fotografar paisagens, exteriores, recantos, planos gerais; no entanto, em cada uma dessas imagens, pelas quais perpassa mais raramente a sombra ou a presença de um ser humano – por vezes um corpo nu (ou um olhar nu) – encontro uma dinâmica emocional intensa. Como se cada imagem fosse um acontecimento, o elo de uma história vivida, que nos levasse a intuir uma cadeia de relações. São imagens epifânicas: anunciações de um instante criado no encontro do fotografo com as coisas.

Nestas 33 fotografias, essa vocação permanece intocável.

Há no entanto algumas modulações assinaláveis nas diversas formas com que estrutura o seu trabalho.

Numa primeira abordagem como é esta, e sabendo, como dizia Lévi-Strauss, que interpretar é sempre traduzir um pensamento noutro pensamento, ou uma linguagem noutra linguagem neste caso, imagens em palavras… parece-me descortinar três formas de chegar a essa imagem epifânica. A essas três formas chamei respectivamente imagem descoberta, imagem-enigma e imagem-história.

A imagem-descoberta é-nos fornecida pelas fotografias que procuram o detalhe. Este detalhe anuncia-nos toda uma série de contrastes: entre o grande e o pequeno, o claro e o escuro, o nítido e o confuso, a morte e a vida. O pequeno caracol que se revela diante da imensidão da paisagem, a bola-planeta em face dos rochedos, o corpo de uma mulher atado com ramos, a mulher nua que se descortina muito muito ao longe. José Manuel Rodrigues usa aqui um efeito de contraste de escalas, que nos relembra Gérard Castello Lopes. Mas este trabalho a partir do jogo de escalas tem em G. C. L. uma dimensão lúdica e cosmológica, bem como de reflexão séria em torno do médium que é a fotografia. Em J. M. Rodrigues ele ganha um conteúdo mais dramático: remete para a noção de finitude do ser, para a dialéctica vida-morte, mas também para o maravilhamento perante a criação (fotográfica também) que surge sempre que nos confrontamos com o minúsculo.

Uma outra direcção de leitura conduz-nos pelas imagens-enigma. Aqui as fotografias constroem-se como um emaranhado de sinais, onde por vezes se confundem o alto e o baixo, a esquerda e a direita. Há nelas uma certa indecibilidade de conteúdo, não sendo imediata a sua leitura: a rapariga que espelha o seu rosto na água à qual o encosta, a montra de retratos, a paisagem feita de imagens sobrepostas (?), a lua que se mostra sobre a sombra fugidia… Encontramos aí uma negação implícita da imediatez, sem que no entanto isso se torne uma posição ideológica, mas apenas o desenhar de uma estética que questiona o sentido e a construção de uma imagem.

Temos ainda as imagens-história: uma ramo de flores secas junto a uma parede arruinada; a parede que revela uma súbito desenho na decadência do estuque; o rectângulo de luz na escuridão da ruína, a janela acidental e minúscula, por onde se entrevê a imagem de Cristo num pórtico. Em todas elas encontramos uma ideia de indício, de elo de uma história. Certas imagens, como a da parede esburacada, comportam uma dimensão trágica, de sinal ou presságio, que relembram algumas fotografias de Meatyard. Nesta perspectiva, parece-me que a imagem surge como um acidente – talvez no sentido em que Francis Bacon diz que as suas pinturas são um acidente como uma constelação favorável de sinais que anunciam a manifestação de algo já acontecido ou que vai acontecer. Situam-nos no interior de uma cadeia de emoções subitamente iluminada, ou dentro de uma potencial narrativa. Possuem a dinâmica do sobressalto – e do encantamento – que é estar vivo. E, do mesmo modo que é apenas uma instante que separa a vida da morte, também aqui nos deparamos com um estreito limiar a separar aquilo que é o sentido de uma imagem daquilo que poderia não chegar a sê-lo.

Uma imagem completa, finalmente, estes três caminhos que aqui desenhei: o auto-retrato feito de sombra, com a máquina fotográfica. Ele introduz aqui mais um elemento para a compreensão desta estética, já que é uma estética centrada na relação imaginária do sujeito que vê e sente com mundo exterior, por intermédio de um instrumento que lhe permite construir e inventar imagens para esse mundo. Sem estas imagens o mundo não seria certamente o mesmo.