Vimos, na exposição anterior, que as obras/os artistas mais produtivos da década de 70 foram arriscando aproximações a sucessivos “vazios” expressivos e sucessivas rupturas de linguagem. Esta atitude foi expressão do estabelecimento de uma nova relação com as práticas pictóricas tradicionais, exemplo das últimas e mais radicais rupturas dos tempos modernos. Tendeu a autonomizar cada etapa da produção ou cada elemento constituinte da obra (afirmação do gesto puro, da forma pura, de uma relação pura/absoluta com o espaço, sobrevalorização do projecto e da ideia) e tendeu a apropriar-se de práticas artísticas paralelas (fotografia, cinema/vídeo, teatro). Criou-se então, aquilo que afirmamos ser “um clima de rarefacção e esvaziamento dos puros valores sensoriais e de intenção subjectiva”, clima que preparou o “terreno criativo e de mercado para as transformações do período seguinte”, aquele que agora nos ocupa, o dos “anos 80”.
Pensemos portanto os “anos 80” como uma época que (no seu início) marcou um violento afastamento das práticas conceptuais e determinou um “regresso à pintura”.
Consideremo-los ainda, como um período de múltiplas falências e múltiplos retornos. A falência das ideologias e práticas políticas salvíficas, dos discursos científicos do estruturalismo e do marxismo, provoca reacções criativas contraditórias, mas, muitas vezes inseparáveis: o retorno a um entendimento da arte como forma de uma intensa subjectividade (campo confessional exacerbado ou intimista das experiências pessoais do artista); a revalorização das relações do artista com o peso mítico da história e da cultura (reutilizando práticas e soluções das correntes expressionistas e românticas); ou, finalmente, o desenvolvimento de uma atitude de profunda ironia ou cinismo. Isto resulta, globalmente, na utilização eclética de todas as linguagens e teorias estéticas disponíveis na história da arte (nomeadamente das próprias propostas conceptuais). Pondo em causa, de modo frontal, a noção de vanguarda artística, esta atitude de desvalorização, configurou aquilo que, no debate teórico e artístico, das artes plásticas em geral, e na produção arquitectónica, em particular, se designa por “posmodernismo”.
Condicionalismo específicos
No caso português há que considerar alguns outros parâmetros que, por um lado, reforçam a caracterização geral da década e, por outro lado, lhe atribuem algumas especificidades. Entre nós, a redefinição dos parâmetros da criação coincidiu com reajustamentos realizados em torno de três principais transformações da nossa situação histórico-social: o fim do império colonial, o fim da ditadura, o fim da utopia revolucionária socialista. Podemos determinar, a partir daqui, um conjunto de importantes transformações comportamentais: as formas e conteúdos do trabalho artístico deixaram de (poder) reivindicar qualquer tipo de objecto social, para se apresentarem como expressão unicamente individual; a produção artística deixou de poder procurar justificação em qualquer teoria/doutrina exterior à prática artística; o terreno de confrontação situou-se no mais estrito limite dessa prática deixando de se fazer contra as instituições ou discursos institucionalizados. Há ainda a considerar o violento recuo na dinâmica do mercado nacional das artes plásticas que, em crescimento inflacionário desde fins de 60, terminou abruptamente após 74. Só a partir do início da presente década esse mercado se reactivaria em relação, aliás, com o crescendo de produção, movimentação e inovação artística.
É neste contexto pós-revolucionário que se realiza, em Lisboa, o balanço de toda a dispersa actividade que, no sector genericamente ligado ao conceptual, se desenvolvera. A exposição (organizada por Ernesto de Sousa), chamou-se, significativamente, Alternativa Zero, e pode dizer-se que encerrou a década de70. Quando em 1983, também, em Lisboa, se realizou a exposição Depois do Modernismo, já os novos parâmetros estéticos e de sensibilidade determinavam as linhas mais produtivas da arte nacional. Abriu-se, a propósito desta exposição, um vasto campo de discussão, alargada a todos os domínios da criação (arquitectura, fotografia, música, moda…) que inaugurou, em termos de opinião pública, a nova década, o fenómeno desencadeado relaciona-se rapidamente com os interesses de um mercado de novo em movimento – não conseguiu, porém, interessar os poderes institucionais, instalados numa visão ultrapassada e ineficaz.
Artista e obras
1-O desencadear das novas situações atrás delineadas fez com que a obra de alguns artistas bastantes mais velhos, pudesse ser reavaliada e lograsse uma renovada contemporaneidade. Destaquemos aqui, Dacosta e Paula Rego. Em ambos, a referência ao surrealismo pode permanecer pertinente, mas apenas na medida em que ambos souberam evitar a degradação anedótica da imagética dos pioneiros.
Dacosta, regressado à pintura no final dos anos 70 (depois de trinta anos de afastamento) abandona uma vertente de revolta e tragicidade temática e desenvolve composições simétricas e fragmentadas ou/e soluções de frontalidade, convocando figuras de memória individual ou colectiva (da sua infância, das suas ilhas açoreanas).
Paula Rego, mantém os fortes registos de tensão, que desde sempre determinaram rupturas no interior das sua figurações e composições e, agarrando a vertente perversa existências, apresenta-nos um diário de pesadelos e destruição onde as personagens de historietas infantis ou populares a que visualmente recorre, são apenas pretextos para a explicitação torrencial ou extática de uma angústia e de um dilaceramento.
2-Desenvolvendo o seu trabalho apenas desde a década de 70, Julião Sarmento ultrapassou as linguagens conceptuais para prosseguir, na pintura, a apresentação de um universo pessoal, de uma imagética obsessional. Trabalho em torno de estratégias de sedução e de conquista onde a relação com o corpo ( a pele, a carne, o sexo) determina cada imagem convocada para as suas composições fragmentadas e não narrativas. Também Gerardo Burmester, aparece nos anos 70 e depois de manter expressões típicas do período dos anos setenta (como seja a performance) aproxima-se de uma linguagem que, quer a nível formal (peso matérico, indefinição entre figurativo e abstracto, utilização de grandes dimensões) quer a nível temático (expressão de um vitalismo forte e definição de um clima de valor dramático e operático) o relaciona com as linguagens dos “anos 80”.
3-Coincidindo com o próprio nascer da década, e formando nela a sua imagem pública, podemos, depois, distinguir outros dos artistas aqui representados. Cabrita Reis e Calapez, que entre 1982 e 1986 expuseram sistematicamente em grupo (ainda com Rosa Carvalho, Ana León, Croft e depois, Rui Sanches) reflectem ambos, por caminhos muito diversos, uma primordial vontade de criação/ordenamento do mundo.
Calapez, revisitando a memória dos mestres do primeiro renascimento ou a acidez cromática e desrespeito pelas leis perspectivísticas de entendimento maneirista, ensaia a construção/desconstrução de sucessivas arquitecturas ou espaços de dimensão arquitectural, evoluindo de imagens pesadas e cenográficas para um sistema de imagens abertas e em transparência, cujo limite é o céu.
Cabrita Reis constrói espaços físicos e metafóricos de sentido absoluto, a que são alheias quaisquer atitudes de medição ou transigência. Deixando progressivamente a figuração, para abordar geometrizações de sentido simbólico, fazendo com que as cores (negros, vermelhos, dourados) evoluíssem de um registo de brilhos para uma registo escurecido, onde o castanho se espalha de modo dominante, Cabrita Reis alcança uma decisiva coincidência entre a consciência mítica de Poder e a capacidade e radicalidade da criação artística.
Alheia a este grupo, mas com um percurso cronologicamente coincidente, Ilda David’ explora também um universo de referência mítica. Mas fá-lo através de registos de grande delicadeza cromática e sensibilidade poética. Discurso que se constitui como fragmento onírico de uma memória ancestral ou pessoal que os esquemas deslaçados das composições reflectem.
4-Mais novos, Pedro Casqueiro e Ana Vidigal, revelados a partir de uma exposição bastante alargada (Talentos emergentes, Lisboa, 1983) vão desenvolver todo um outro tipo de pintura que, surgindo em definitivo como alheia a programas sociais e sentidos programáticos ou de reflexão intelectual e cultural, desenvolvem esquemas de composição reveladores de uma relação eufórica com a existência.
Trata-se de registar uma velocidade que, em Casqueiro, releva de uma relação intensamente pessoal com os materiais e as regras de composição – exercitando registos de ineditismo através de uma desmultiplicação e/ou desdobramento de valores formais, cromáticos e do estabelecimento de espaços pictóricos de grande ambiguidade e riqueza.
Em Ana Vidigal, idêntico entendimento, surge antes como testemunho de um mais apaziguado e explícito trabalho de memória: agregando objectos que funcionam enquanto fragmentos (não ilustrativos mas comparticipantes) de múltiplas pequenas experiências vivenciais (colagens ou simulações de objectos, frases, etc.).
5-O sentido de irrisão de valores exteriores à pintura, afirmados aqui de modo claramente plástico, é acrescentado, na produção global etário seguinte que se designou em sucessivas colectivas como grupo homeostético, de uma dimensão primordial de reflexão intelectual, exercida sobre os modos e meios criativos e as interacções entre os diferentes níveis culturais envolvidos no processo criativo.
Em Proença verifica-se a acentuação irónica ou a deslocação narrativa de signos de forte conotação literária/histórica, criando uma pintura onde a figuração e a legendagem, a articulação entre a imagem global e os títulos das peças ou das séries se torna fundamental para o entendimento de todo o processo.
Em Portugal, uma pintura inicialmente relacionada com valores essencialmente visuais ou de uma narratividade elementar, evolui também para situações de sucessivo comentário irónico e erudito, exercido sobre a própria história da pintura moderna.
Apenas Xana mantém uma relação mais evidente com puros valores plásticos _ desmultiplicando os seus exercícios de paródia através do desenvolvimento espacial de bizarros e lúdicos volumes (quase esculturas) pintados em cores abertas.
Conclusões e perspectivas
O inquérito que aqui se deixa incompleto (notemos, por exemplo, que por exigência de espaço de exposição não se apresentam peças de escultura área de criação em que a inovação plástica e poética dos “anos” 80” foi decisiva), propõe um olhar sobre a primeira metade da década. Evoluções mais recentes fizeram surgir novos nomes e fazem prever o desenvolvimento de novos tipos de sensibilidade. Uma, cujo discurso, mantendo uma dimensão de subjectividade se retrai para posições de grande intimismo, agrupa alguns dos nomes mais jovens: outra, retoma os valores de reflexão intelectualizada e as sensibilidades do geometrismo ou da minimal arte e do conceptual, para esta via tendem alguns dos nomes da primeira metade da década.
O que dos “anos 80” se pode finalmente esperar é que tenha sido finalmente conseguido o estabelecimento de um firme mercado de arte (alargando a oferta e a sua qualidade e acerto pelas linguagens internacionais e alargando a procura a nível oficial/institucional, parece de difícil a mobilização e modernização dos critérios de aquisição). E que se tenha finalmente adquirido a consciência de que esse “bom” só será possível de manter e garantir a partir de uma internacionalização dos circuitos de colocação dos produtos. A intensa participação nas Feiras de Arte europeias e americanas e os intercâmbios com galerias e artistas estrangeiros, que desde os últimos três ou quatro anos se vêm alargando, apontam optimisticamente para essa via.
João Pinharanda
Lisboa, Fevereiro de 1988