Esta exposição pretende criar um estado de espírito. É seu propósito identificar e pensar um conjunto de esculturas e autores marcantes na nossa actualidade cultural. Tudo isto surge suscitado por um espaço que é, simultaneamente, um desafio e uma limitação. A ideia é aceitar as regras do primeiro, e transgredir da segunda. Por isso esta exposição – e o modo de apresentar –, escapam forçosamente a um discurso monográfico. Ideal seria em vez disso perceber (descortinar) uma rede de relações e afinidades entre o espaço desta casa e cada uma destas peças. A noção de escultura alterou-se significativamente ao longo dos últimos anos.
Hoje não é mais possível encontrar para ela uma definição convencional. Os materiais, as técnicas, a iconografia, implicam outras considerações estéticas e filosóficas. Artistas como Joseph Beuys, Brancusi, Donald Judd, Carl André, Richard Long, Richard Smithson ou toda a reformulação da mentalidade estética que havia sido operada por Dchamp, e isto só para citar algumas referências imediatas, ajudam-nos a compreender esta alteração do estatuto semântico e formal do discurso escultórico. Com cambiantes próprias, os últimos tempos portugueses oferecem-nos uma rica panorâmica no domínio da escultura de que estes seis artistas aqui reunidos representam um extraordinário testemunho.
António de Campos Rosado, Alberto Carneiro, José Pedro Croft, Rui Sanches, Manuel Rosa e Zulmiro de Carvalho, surgem, nesta perspectiva, ao encontro de um envolvimento raro: a escultura habita uma casa – esta.
AQUI CHEGADOS
Aqui chegados deparamos com diferentes afinidades e estratégias na ocupação do espaço. E com elas transporta-se uma questionação profunda a sobrevivência, a homenagem, a identidade do pensamento contemporâneo, a permanência religiosa, o progresso e a desilusão.
É hoje inegável a existência de uma nova escultura portuguesa que de algum modo podemos reordenar em função de critérios que, embora pessoais, terão de comum com outros surgidos, ou a surgir, a consciência de que num período de tempo curto a escultura portuguesa se afirmou numa diversidade (plásticas e temática) de grandes imaginativos.
Tudo isso se pode ver, ainda, em função de referências históricas de importância decisiva aqui representadas pelas obras de Alberto Carneiro e Zulmiro, um e outro entregues a pessoalíssimas constatações sobre o modo (e o meio) de potencializar a inquietação civilizacional que os anima.
Isto mesmo é ainda válido para os outros quatro aqui presentes, graças a uma fascinante maneira de viver a relação material com a vontade e o desejo que cada um favorece com particular talento.
Por isso, integrar esta exposição numa linha de continuidades recentes é, também, ampliar a possibilidade de ver o sintoma e a conveniência de celebrar uma meditação estética que tem proporcionado novas perspectivas à arte portuguesa e à sua incursão em sucessivos planos de afirmação internacional.
Neste sentido pode ser integrada a produção de artistas que têm feito oscilar a sua produção para o campo dos objectos (obras recentes e algo polémicas de Cabrita Reis de Gerardo Burmestrer ilustram esta questão), entrando em confronto (e talvez em conflito dinâmico) com a designação mais comum de “escultura”.
António Campos Rosado, Croft, Manuel Rosa e Rui Sanches, correspondem, com toda a certeza, ao emergir de uma “geração” de escultores responsável por este sentimento de estabilidade e fecundidade criativa na actual escultura portuguesa. De grande vitalidade, as suas propostas suscitam o devir de novas linguagens criativas. Por outro lado elas visitam criticamente as grandes referências internacionais a que se encontra sujeita a evidência do acto de ver escultura. Vê-se sempre em função de uma compreensão escultórica anterior, é bom não esquecer, e por outro correspondem ao sentimento “português” de formulara a prática e o gosto de um alargamento, ou maior abrangência, dos significados plásticos numa experiência tridimensional.
A monumentalidade, a memória, o sentido comemorativo, a paixão pelo absoluto, tornam-se aqui uma espécie de manifestações total de “forma” dentro de espaço, crescendo ao encontro da delimitação mental do mundo, da infinidade.
A escultura feita lugar de um egoísmo sem paralelo. Poder-se-ia assim quebrar com a clivagem entre passado e presente, entre a memória e a previsão. A escultura podendo surgir como uma urgência absoluta, fugindo ao descontrole de tudo, vivendo (se) como invenção de um outro espaço.
OCUPAÇÕES
A escultura habita uma casa. Normalmente as casas são habitadas por pessoas, ou fantasmas, por objectos que no interior delas adquirem uma lógica própria. As casas são habitadas por personagens, famílias, por silêncio colectivos e olhares rituais…
Há alturas em que as casas cedem ao peso da sua própria memória. Ás vezes acontece, apesar dos desejos mais profundos erguerem uma barreira contra essas destruições eminentes, que se põem de acordo com o tempo para perpetrar traições. Sucede-lhes, inevitavelmente, a ruína. E as ruínas, como fabulosamente Borges ensina, podem tornar-se circulares. É um modo, possivelmente o único, das casas se tornarem infinitas. E sucessivo o ser que nelas sobrevive.
Há em tudo isto uma constatação fundamental: cercam-nos corpos, cada um deles ambiciona uma revelação. Em cada um deles a matéria é qualquer coisa divinizada, que nos guias o tacto, os sentidos, no encontro sublime com o espaço. Nasce assim uma peculiar ideia de separação física.
O jogo de uma descoberta. Onde termina uma superfície e começa o vazio? E que vazio é esse que se deixa abraçar, ou cortar, por corpos desenhados numa estranha arquitectura?
O vivido, a acumulação de referências, a passagem de dias que tocaram de um modo diverso a conjugação das sombras, e o ritmo das respirações, esses factores imprevisíveis que fazem com que a vida seja efectivamente material, surgem-nos aqui como a reconquista de uma fabulosa dimensão simbólica. É ocasião para nos entregarmos a uma ancestralidade aqui reiterada pelo saber e pela materialidade de obras que expressam a escultura em toda a sua riqueza originária.
E é ainda todo um espaço de dúvida, de radical interrogação sobre o significado das relações entre os homens e a invisível realidade que os cerca que nos estimula a esta entrega fictícia, à adivinha de um rosto “petrificado”, nas paredes de uma casa onde mãos curiosas deixam desta vez as rugas que tempo algum se encarregará de desfazer…
A escultura habita esta casa. Que seja esse o alcance contemporâneo da nossa procura enquanto visitantes.
Eduardo Paz Barroso