Podemos caracterizar a década dos anos 70 como de múltiplas encruzilhadas.
Alguns percursos, apesar de maioritários em termos quantitativos e de aceitação pública e crítica, constituem-se como “linhas fracas” em termos inventivos e plásticos, porque se limitam a banalizar e/ou a desvirtuar as inovações que no período anterior tinham marcado a produção artística nacional. Ou seja, a tornarem inócuas novidades como a da ultrapassagem da oposição entre “abstracção” e “figuração”e do estatuto necessariamente social da obra de arte.
A ruptura com esta normalização das “linhas de fuga” dos anos 60 surgiu através de sucessivas redefinições dos códigos de linguagem criativa anterior, das relações sintáticas entre os elementos plásticos constituintes da obra, da relação estabelecida entre o artista e a obra e entre estes e o público. Tentando generalizar, podemos dizer que se assiste (nos casos artísticos mais interessantes) a uma atitude de enunciação dos vários elementos do acto criativo (os elementos de concepção e de execução da obra). Esta revelação de processos transforma não só a poética da criação como também as relações do público com a obra de arte. O artista expõe-se. Numa nova tentativa de abolir as fronteiras entre os géneros artísticos, quase se torna actor e encenador (performances e instalações), numa tentativa de eliminar as distâncias entre a prática tradicional e as inovações técnicas, recorre ou combina novos média (fotografia, super 8, vídeo, etc); numa nova tentativa para marcar a proximidade entre a reflexão teórica e a prática artística, interroga-se directamente sobre o estatuto da obra de arte e sobre o seu próprio papel enquanto manipulador dos elementos artísticos e enquanto mediador entre a arte e o público, elaborando discursos visuais-verbais que adquirem aspectos fortemente teóricos e/ou programáticos (conceptualismo). Os elementos visuais e discursivos, plásticos e técnicos da obra de arte, tendem assim a conquistar lugares autónomos no interior da obra. As obras tendem a explicitar as regras da sua própria produção.
Os artistas nacionais já se encontravam fortemente ligados à informação exterior, desde o final dos anos 50, através de estadias em Paris, Londres, Munique, por exemplo (que aventuras próprias ou bolsas da Fundação Gulbenkian lhes proporcionaram) e através da circulação mais efectiva de revistas de arte. As linhas criativas mais interessantes dos anos 70 aprofundaram este sentido de internacionalização dos padrões do gosto e da criação, tomando nomeadamente atenção à situação norte-americana (conceptualismo, minimalismo, etc.).
Não podemos, neste breve texto, caracterizar morfologicamente todas as variantes históricas nacionais destas atitudes artísticas de valorização do pensamento, (dissecação e análise) da acção e das tecnologias na criação artística; nem de estabelecer listagens classificatórias por artistas. Seguiremos apenas (através desta amostragem parcelar) algumas das suas vertentes.
Razões práticas, determinadas pelas condições de exibição, levaram à apresentação quase exclusiva das vertentes criativas que mantiveram mais forte ligação com os suportes tradicionais e com a pintura. Priva-se assim o público da produção mais radical do período e porventura mais problematizadora, a que se desenvolveu através da efemeridade da performance e das instalações e através dos novos média. Foi só em 1977 que, sob organização do crítico Ernesto de Sousa, as produções dispersas ou marginais destes pioneiros (L. Moura, A. Cerveira Pinto, Conduto, J. Carvalho, A. Palolo ou J. Vieira e Helena Almeida) puderam ser objecto de sistematização, através de uma exposição (Alternativa Zero, Lisboa) que aliás propunha uma visão de conjunto entre obras-limite e as restantes tendências mais produtivas da década. São precisamente alguns desses últimos artistas que aqui poderemos ver representados.
A redução dos efeitos plásticos múltiplos, verificada ao longo da década, dá lugar à exploração dos valores puros e autónomos da cor, da linha, do gesto e do suporte: são jogos de largas e fortes cromias (únicas ou repetitivas), de faixas de cor-luz recortadas sobre o suporte não tratado, de simplificações lineares ou gestuais ou aos recortes dos próprios planos do suporte (Ângelo de Sousa, Jorge Pinheiro, Jorge Martins, António Palolo, António Sena e Fernando Calhau). Este percurso significa-se já como um forte processo de sobrevalorização da conceptualização do projecto artístico face aos mais imediatos valores formais e sensoriais das obras. E esta linha de atitude que pudemos alargar à apreciação das obras de António Areal, Álvaro Lapa ou Eduardo Batarda, que se desenvolvem como reflexões em torno dos próprios processos da pintura e dos mais intensos e genéricos problemas da criação artística na sua relação com o real, com a história da arte, com o social e com a subjectividade do artista. Este processo pode desenvolver-se em linhas preferencialmente discursivas ou em linhas que marquem sobretudo os valores e o estatuto do corpo na obra de arte (sua relação com o suporte, com os materiais e médias e a sua aplicação e disposição no espaço das obras) quer pela sua figuração directa (Lourdes Castro, Helena Almeida) quer pela marca indirecta da sua presença (António Sena).
Estas sucessivas simplificações (não por facilidade mas por redução dos desvios narrativos e por intensificação dos valores reflexivos) criaram um clima de rarefação e esvaziamento e valores puramente sensoriais e de valorização subjectivo que prepararam terreno e de mercado para as transformações do período seguinte – aquele que, um pouco ambiguamente, foi designado de “anos 80”.