A Sapataria Ideal

Exposição de Ana Vidigal, António de Campos Rosado, António Sousa, Arman, Joana Vasconcelos, Joaquim Bravo, Lisa Milroy, Rui Chafes, Sylvie Fleury, Teresa Figueira.
Curadoria de João Pinharanda.

João Lima Pinharanda

Sapataria Ideal

(aproximação a um tema fragmento)

Lisboa, 7 de Janeiro de 1998

Há temas recorrentes na história da arte ocidental. Temas maiores, definidos pela iconografia religiosa e história, pela mitologia clássica greco-latina, pelas mitologias nórdicas ou pelo cristianismo, temas celebráveis das historiografias nacionais ou definidos (autonomizados) no decorrer das etapas mais recentes da história da pintura, do renascimento ao modernismo, como a natureza-morta, nas suas múltiplas variantes, a paisagem, segundo várias especialidades, o retrato sujeito a um sem número de modalidades… Era segundo um conjunto estrito e, apesar de tudo, restrito de paradigmas que se organizava a representação artística nos períodos anteriores ao modernismo, era através deles que ela se hierarquiza, que se articulavam os seus níveis…

Esta exposição não parte de um destes temas maiores. De um ponto de vista tradicional nem sequer se poderia falar, aqui, de tema. O que se explora é um elemento acessório; um pormenor no conjunto da representação figurativa e um acessório no conjunto de elementos que compõem a própria figura humana: o sapato. Esse objecto do vestuário humano sempre funcionou como símbolo e, no caso da representação artística, como símbolo visualmente convocado, capaz de expressar uma ideia autónoma mas surgindo sempre como atributo formalmente associado a um conjunto coerente de outros elementos de idêntico ou igual valor e estatuto; um símbolo integrado num conjunto de outros símbolos, cujo sentido se resolvia na unidade dos elementos de um conjunto.

Agora, desde a fragmentação de formas e de sentidos instaurada pela condição moderna, podemos perceber esse elemento (e toda uma constelação de outros elementos) como uma unidade em si. O que era apenas um elo numa cadeia de sentidos globais autonomiza-se e deseja concentrar e garantir por si mesmo um discurso coerente. Cada um desses elementos agrega em seu redor uma rede de subsistemas e significados complementares. Cada símbolo se significa como presença maior que si mesma, o seu significado expande-se para além do particular para alcançar a universidade. Mas esta situação, ao mesmo tempo que facilita a comunicação e a transferência de valores, ao mesmo tempo que garante a obra como “obra aberta”, tende, paradoxalmente, para a criação de universos fechados, de comunicação complexa, que por vezes se esgotam sem si próprios.

O sapato é um dos elementos mais ricos desse universo de universos. O sapato implica o pé e a marcha. Para a psicanálise (de Freud a Jung) o pé é relacionável com o falo e o sapato funciona como espaço de penetração. A intensidade de relações estabelecidas por cada indivíduo com o (s) se (s) ou com o (s) pé (s) alheio (s) é vista como medida de maturação e equilíbrio sexual. No pendor normalizador da psicanálise um excesso de investimento na extremidade do membro inferior humano ou no acessório que o reveste são sinais de disfunção psicopatológica.

Mas o que é fascinante na atracção que se estabelece na cultura universal com essa dupla fragmentar (pé/calçado) é a carga simbólica que a sucessão de civilizações lhe atribui.

O pé (calçado ou não) determina uma das extremidades do corpo (no extremo oposto da cabeça), carrega e desloca com ele, não apenas o peso do corpo mas uma quantidade de valores simbólicos. O pé enfeixado é, para os chinese, o supremo valor do erotismo, o sapato que se assenta simbolicamente num chão é garante da posse do território sobre o qual se mancha – os muçulmanos, tiram respeitosamente os sapatos ao entrarem numa casa estranha, ou na casa de Deus, significando respeito pelo lugar que é de outrem. Usar sapatos é sinal de autoridade e de liberdade pessoal em Roma. Ainda em Van Eyck (“Os esposais dos Arnolfini”), no séc. XV flamengo, os sapatos (par masculino e feminino dispersos no quarto nupcial) se enchem de sentidos cerimoniais ligados ao matrimónio, como o estão à intimidade do casal. No ocidente eles recordam também a viagem (para a morte ou não) e a identificação pessoal do proprietário, como a história da Cinderela exemplifica.

Foi no entanto o modernismo que deu sentido plástico autónomo ao par pé/sapato como a muitos outros elementos que anteriormente integravam unidade interpretativa do mundo. Elres são agora descontextualizados, tomados como coisas em si. Dos exercícios gráficos e mundanos de Manet, ás estranhas tamancas de Van Gogh ou aos elegantes desenhos de moda de Warhol há um mundo de sentidos que se multiplica: o fetichismo sublimado nas botinas aéreas como pequenos pássaros em Manet, a bruta presença da terra em Van Gogh, o cruzamento do maneirismo da forma, com a sexualização do objecto, no discurso de sedução publicitária desenvolvido em Warhol.

Quase tanto como a cabeça o sapato/pé (até por ser, como vimos, o seu pólo equivalente) surge como sinal privilegiado de fragmentação. Se a cabeça (decapitada) é a própria imagem do corpo unitário do muno antigo desmembrado pela revolução francesa (no momento próprio da instauração do mundo moderno), a acentuação das valias sexuais do pé/sapato ao longo da arte moderna são a imagem da exacerbação de um aspecto da vida interior que, tornado motivo mais ou menos central de certos discursos, gera assim uma situação de desequilíbrio da unidade psicológica do Homem pré-romântico

Ana Vidigal

Estamos perante uma colagem que funciona como uma pintura ou um desenho. Perante uma peça que se afasta da representação linear do tema para se envolver com aspectos diferidos do mesmo.

Nenhum sapato, nenhum pé: tampas catonadas de caixas de sapatos.

Nenhum pensamento e nenhuma acção parecem derivar da razão útil dessas caixas. O que Ana Vidigal fez foi apenas dar sentido à valia estética que descobriu olhando e colocando, lado a lado e invertidas, uma série de tampas de caixas de sapatos. Ficando a identificação das caixas elidida resta a valia formal dos rectângulos e a valia cromática dos seus rebordos.

Articulados os rectângulos segundo múltiplas soluções as composições ficam mais ou menos instáveis, a geometria implícita fica mais ou menos ameaçada. Lidando com objectos de um quotidiano que se torna revelador de um evidente intimismo esta obra é, afinal, puramente visual: é cor e composição é desenho e relevo.

António de Campos Rosado

Estes são desenhos escondidos de uma produção vasta e já antiga no percurso do artista.

Principalmente escultor, Campos Rosado estabeleceu aqui uma relação temática independente com o tema e estes desenhos não funcionam como estudo de nenhuma obra tridimensional. Ecoa neles uma informação Pop recolhida num ambiente europeu (o jovem artista estava em Londres de onde seguiria para os EUA) capaz de conduzir as imagens para um campo de ironia crítica ou de contradição do sentido de glamour mais evidente nas obras americanas. Botas e pernas e corpos.

Botas com valia própria – cada uma por si é já um personagem – acrescentadas de pernas que acentuam os traços de personalidade adivinhados… Personalidades-corpos femininos predominado sobre sapatos (botas) cujo perfil de utilização é originariamente masculino. Estamos perante uma evidente exploração do paradigma fetichista do calçado, ilustração de um imaginário comummente masculino.

António Sousa

A peça de António Sousa supõe claramente a ultrapassagem do sapato como tema para o utilizar como pretexto. Ao mesmo tempo que se serve (feminino) e que cria uma situação em que a leitura poderia ser intensamente poética (colocando elegantes sapatos num aéreo exercício de funambulismo sem corpo), o artista corta essa deriva de modo radical: o título e o complemento de chão que a peça apresenta servem-lhe para desviar o discurso até um campo concreto e político. “Justa causa” não é uma metáfora, é um fragmento de um termo jurídico demasiadas vezes repetido na zona onde a obra se apresenta: “Despedimentos com (ou sem) justa causa”. O par de sapatos femininos recorda o sexo do grosso do contingente de mão-de-obra sacrificada (e como serão os próprios sapatos das operárias que fazem estes sapatos?; as cadeiras (onde nos podemos sentar e rodar ludicamente pela sala) são modelos de cadeiras de administração, onde seriamente se ponderam as necessidades (e consequências) de saneamento das empresas do sector.

Arman

O trabalho apresentado serve de homenagem/recordação de Van Gogh: pelo excesso de cor (que Arman cita da forma retórica que dá sentido à sua obra), e pela própria presença de uma botas (também o pintor de Arles tinha umas, que pintou) ou as do próprio Arman, se não fossem testemunhos forjado. A presença física (e não representada) das botas, que se encontram coladas contra a pintura e agressivamente dirigidas ao nosso corpo-olhar, remete para as origens do próprio percurso de Arman, ligado nos anos 50 e 60, ao “nouveaux réalisme” francês, à recuperação duchampiana e neodada que na Europa se fazia do quotidiano tornado omnipresente pela conjuntura pop internacional. Esta pintura-objecto remete para uma interessante exposição realizada em 1994 (na Fundación Miró de Palma) onde se reuniam sapatos usados por 160 artistas nos seus trabalhos de atelier. Há uma outra peça recente de Arman capaz de contrastar com a vitalidade teatral da pintura escolhida: um monte de sapatos passados a bronze, um bronze tratado de modo a sugerir um longo tempo de imersão, cria um momento de revelação do peso infinito da morte sobre as coisa e, simultaneamente, de eternização do tempo.

Joana Vasconcelos

Uma simulação das lombas que, nas zonas urbanas, retardam a velocidade dos veículos é colocada a intervalos irregulares no corredor de acesso ás salas onde as outras obras se encontram expostas. O trabalho implica com os nossos passos. O trabalho é uma espécie de derivação motora dos jogos populares dos trava-línguas – em vez de pôr à prova a destreza da dicção põe à prova a agilidade da locomoção. Retarda a velocidade e interfere no ritmo cadenciado de qualquer andamento pela colocação armadilhada das peças. O trabalho não parte do objecto-signo sapato afasta-se da literalidade temática definida alcançando um grau de valia metafórica mais vasto e aberto: trata do andamento, do acto de deslocação que o pé (calçado ou descalço) garante e trata de interferir nesse andamento: descalço o pé pode ressentir-se da temperatura e da textura relevos metálicos; calçado pode escorregar nelas, produzir ruídos incómodos. Se estivermos impossibilitados de nos deslocarmos “pelo nosso pé”, por deficiência permanente ou passageira de locomoção, a obra torna-se voluntariamente ainda mais agressiva (ofensiva?).

Joaquim Bravo

A relação de Bravo com o tema é vasta e prolongada no tempo: vai da colagem (logo no início da sua carreira artística) à pintura e do desenho à escultura, da atenção literária mais ilustrativa a uma síntese formal muito estrita ou até à ironia paródia das obras que aqui se mostram. Essa paródia é alcançada através de um gesto expressionista muito evidente – e até essa contradição entre o que se espera do expressionismo (seriedade e angústia e o que de uma aplicação evidentemente formal aqui resulta (humor e derrisão) dá sentido à démarche irónica de bravo. “Sapatos andados” lhe chamava o autor dando valor de personagem a cada um deles: triste ou gaiteiro, pobre ou remediado, enfatuado ou tímido… A solução figurativa desta série é rara numa obra que desde os eu início se concentrou na exploração das possibilidades da abstracção mais radical: garantida pela cor pura, aplicada por um gesto livre de desenho, garantida pela exploração de sinais essenciais e derivações geométricas.

Lisa Milroy

A pintura marca um momento de serialização assumida na imagem repetitiva se sapatos numa enorme superfície. Mas marca também um momento de contestação a esse universo de serialização. A malha padronizada dos sapatos pintados sugere a repetição de um módulo geométrico-matemático mas, há uma sucessão de jogos internos a essa malha que nos conduzem do sapato isolado ao sapato com par (raro) e ao mais vulgar e sugestivo trio de sapatos. O esplendor cromático de sapatos. O esplendor cromático da imagem, que a aproxima da vibração dos painéis publicitários, da luminosidade dos ecrãs, aproxima também o sentido da pintura da releitura (ou prolongamento) da pop art – é preciosamente a individualização ou capricho interno das formas que contraria subtilmente a linearidade desse prolongamento. Entre o efeito de multi(tude) dão e o efeito de personalização é que se joga o sentido desta pintura – e do trabalho da artista no período, quando recenseava do mesmo modo outros objectos e acessórios de vestuário feminino. Este dado (a determinação do género feminino do objecto) não é secundário num tempo em que muitos dos discursos artísticos (políticos e sociais) se orientam em direcção a esse campo de intervenção.

Rui Chafes

Digamos que nos encontramos perante um discurso radicalmente poético. Os sapatos (um par feminino e um par masculino que funcionam como duas obras independentes) apresentam-se como modelo de uma realidade intraduzível que ultrapassa a sua simples condição de calçado. Para isso não contribui em exclusivo o facto de serem sapatos de ferro (houve, pelo menos na história do bailado nacional, uma “princesa dos sapatos de ferro”) – embora essa essencialidade material lhes garanta uma importante cadeia de sentidos temporais e simbólicos. O que se torna poeticamente significativo é a ausência de corpo. Noutros casos aqui apresentados essa ausência não é poética – ou, podendo a imagem aproximar-se desse estatuto, é negada pela introdução de um falha crítica no discurso. A ausência de corpo parece ser apenas resultado de uma franqueza do espectador: incapaz de ver o corpo que se encontra em acção sobre aquelas bases. Porque os sapatos não estão em repouso, pertencem a invisíveis seres em mobilidade e parecem prestes a elevar-se do chão; sinais de uma presença, não são essa presença são sapatos que funcionam como pegadas.

 

Sylvie Fleury

Especificamente feminista é a peça de Silvye Fleury e ao obra que desenvolve em torno das imagens de marca que compõem o universo espectacular da mulher na sociedade de consumo. Uma passadeira, como uma passerelle, quatro pares de sapatos como que epsrendo os pés que os vão calçar e desfilar com eles.

De diferentes marcas e estilos, exibindo-se todos na cor, feitio ou estatuto garantido pela marca que os produziu os sapatos estão vagos, isolados, vazios, sugerem a ideia de personagens na eminência de uma acção mas prolongando sem fim a angústia desse momento. Sylvie Fleury pretende denunciar pela exibição dos elementos mesmos desse universo (as cores, as palavras, os objectos não artísticos apropriadados) e pela acentuação até ao limite do suportável da ausência dos corpos implicados (destinatários e protagonistas) nesse processo.

Teresa Figueira

As peças tomam o sapato como objecto autónomo, como objecto escultórico modelável liberto da imediata relação com o referente.

Há no entanto uma ambiguidade básica nestes objectos escultóricos: eles são, de facto falsos sapatos – se pensarmos que são formal e materialmente impossíveis de usar, mas podiam ser apenas (essencialmente) protótipos de sapatos, projectos de sapatos, modelos odeias de sapatos… E podiam ser, ainda, representações diferidas de sapatos simulando a sua encenação decorativa numa montra de sapataria. Aqui entra a relação que estabelecem com os objectos que lhes são associados: associação material (entre a plasticina, a madeira, o vidro e a linha), associação formal (entre a organicidade, a rigidez geométrica, a fragilidade e informe), associação lumínica (entre o opaco e o translúcido) … É significativo que não pareça necessário à artista pensar sempre no objecto como um par, usando-os quase sempre individualmente. Eles como que assumem personalidades – e neste sentido remetem para uma individualização, uma caracteriologia comum em artistas tão díspares como Warhol, Milroy, Abramovic, Tosani ou Joaquim Bravo.

O que a exposição procura é uma visão global, múltipla na recolha de linguagens e na ilustração de momentos e tipos diversos de utilização do motivo escolhido. A aproximação internacional serviu-se de oportunidades garantidas por galerias que têm em Portugal obras de artistas com trabalhos sobre o assunto. A aproximação interna dividiu-se entre a recolha de exemplos recentes, casos desconhecidos e o convite a três artistas para produziram peças específicas pensadas para o tema e para o local de exposição. Ao longo do trabalho de pesquisa de obras revelou-se a impossibilidade de resolver num discurso fechado esta representação. Essa impossibilidade é afinal a que condiciona toda e qualquer abordagem global do tema: se podemos circunscrever a Ideia-sapato parece impossível sintetizar a matéria e a sua forma, se é possível unificar o sapato no seu espaço interior (o vazio que é preenchido pelo pé que o calça e lhe dá utilidade básica) é impossível sintetizar o seu exterior, o lugar tradicionalmente escultórico onde se inscrevem todos os discursos de afirmação, significação e exibição do possuidor do sapato, de quem com ele, nele e através dele, se exibe.

Fernanda Câncio

Shiny Shiny

“Kiss the boot of shiny shiny

leather/ Shiny leather in the dark”

Velvet Underground

Lembro-me perfeitamente. Tinha para aí quatro ou cinco anos e o meu primo também. Estávamos na quinta, num caminho de gravilha rosa, havia sol e flores na encosta da vinha. Eu tinha uma mini-saia e as pernas sem meias e aqueles sapatos.

Eram brancos, de verniz, com muitas presilhas com botões. Tinha feito uma birra de manhã mas mesmo assim a minha mãe tinha-me obrigado a sair com eles. Eu odiava usar saias e odiava aqueles sapatos. Tinham sido da minha irmã mais velha e eram mesmo sapatos de menina. Eram horríveis. Eu queria correr com os cães no meio dos torrões de terra lavrada, subir às árvores, jogar à bola e andar `bulha e ser uma heroína dos livros, com cavalos e guerras e façanhas.

Com aqueles sapatos era impossível. Foi por isso que fui ali com o meu primo. Ele tinha mais força e fazia tudo o que eu lhe dizia. E partiu, uma a uma, as presilhas dos sapatos. Eu fiquei a ver, a dizer: mais, mais. Quando a minha mãe me viu a chinelar os sapatos e me perguntou o que tinha sido aquilo, respondi-lhe: fui eu. Disse ao Luís para rebentar com eles. Porque são feios e eu disse logo que não queria calçá-los. A minha mãe ficou assim com cara de quem não sabe o que dizer e chamou o meu pai e a minha avó, “Venham cá ver o que estes palermas fizeram”. O meu pai ainda me disse não sei o quê mas os malditos sapatos foram mesmo para o lixo, não serviam nem para dar aos pobres. E nunca mais me obrigaram a pôr sapatos parvos que eu não queria.

Depois, uns anos depois, foi a cena dos ciganos. Não sei bem situá-la mas tenho a certeza absoluta de que se passou algures no final dos anos sessenta ou inícios dos setenta, quando toda a gente andava de sapatão de sola compensada biqueira larga arredondada e calças à boca-de-sino, incluindo eu. Estava na rua quando passou uma família de ciganos, uma família enorme, eles e elas todos de preto e rosto fechado, elas de cabelos lisos, ondulantes, saias a arrastar e eles de chapéu e casaco. E calças justas e botas negras. De salto inclinado, incrivelmente bicudas, ta, tac tac pela rua fora, rápidas, com aquele perfil de salero, a caminho de um tango ou de um duelo ou de uma dança qualquer. Ao desafio dos olhares e das modas e do tempo, indiferentes, altivas. De fábula. Não descansei enquanto não tive umas botas assim, negras luzidias, biqueira impossivelmente longa, bicuda bicuda de matar baratas ao canto das casas, As botas justas para todas as ocasiões, as botas que acertam qualquer roupa, qualquer mood, qualquer dia, desenham a curva certa do pé e da perna e do corpo, jogam com as saias e as calças todas e nunca me deixam ficar mal. Uma espécie de receita para quando tudo o resto gira ao contrário e é preciso algo de sólido, certo, garantido. Há quem se afeiçoe a divindades e quem vá ao cabeleireiro. Eu tenho as ditas botas.

Claro que encontrar umas botas assim, perfeitas, não é fácil. Nada nada fácil. É preciso procurar, procurar. Não pactuar com a pobreza do mercado ou a miséria das ideias ou o mau gosto da indústria ou o provincianismo dos comerciantes. E nunca desistir. Se puderem ser únicas e ninguém tiver umas iguais, perfeito. Se isso não for possível, então ao menos que sejam muito raras.

Muito caras, por exemplo, ou compradas no estrangeiro muito longe. Melhor ainda: mandadas fazer.

Por ser tão fácil as primeiras mesmo a sério apareceram-me tarde. Não brilhavam, mas isso foi porque eu quis que fossem de camurça preta. Uma espécie de encontro entre a canção dos Velvet, os “blue suede shoes” do Elvis e as Chelsea boots dos Beatles. Com elástico dos lados, salto de cinco centímetros biselado e muito bicudas. Foram feitas á mão pelo senhor Policarpo, João Policarpo, sapateiro artista nascido no Algarve, fetichista, perfeccionista e um bocadinho aldrabão, que tinha a sua oficina na Avenida dos Estados Unidos da América e que durante quase dez anos, até se retirar por doença aos oitenta e muitos, foi o meu Messias. Tinha centenas de formas de sapatos em madeira, lindíssimas, dois ajudantes mal-encarados com ar de fome a quem tratava abaixo de cão e adorava contar-me a história da vida dele, mostrar-me os livros com gravuras da História de Sapato que para lá tinha encafuados no meio das peles de todas as nações, do cheiro a tinta e a cola e dos posters de gajas nuas que lhe forravam as paredes.

Fazia-me promessas mentirosas, subia os preços para ver se passava, tinha acessos de raiva insultuosa e vomitava palavrões. Mas adorava desenhos complicados e encomendas exigentes e gozava as tias que lhe apareciam com sapatinhos a forrar para casamentos. Levava-lhes balúrdios por aquilo e gabava-se disso. Tinha orgulho, um orgulho espalhafatoso, da sua arte. Gostava de se sentir o último, de saber que o tempo tinha condenado a raça dele à extinção e que depois dele não haveria ninguém e as formas de madeira seriam peças de museu. Gostava sobretudo de ir buscar um banquinho e colocar lá o pé da cliente, os olhos de esguelha a seguir os contornos enquanto lhe embalava a atenção com perguntas e explicações. Desde que esteve muito doente e deixou de poder andar nunca mais lhe telefonei, com medo que me dissessem que tinha morrido. Não voltei a encontrar um senhor Policarpo. Nem sequer alguém que se lhe parecesse, que soubesse, extrair de um desenho os moldes de papel que depois recortava no cabedal, pedaços de cabedal mole em ângulos arredondados e agudos que a ajuntadeira cosia uns aos outros até obter uma espécie unidimensional de sapato. Uma coisa informe de que depois, com a ajuda dos forros e da sola, surgia a escultura. Sólida, sem fissuras nem memória. E, como todas as coisas muito novas, disponível para qualquer ficção.

“If you’re on thin ice, you might as well dance”

Tom Waits

É uma espécie de radiografia da alma e nunca dei por que falhasse. Há sapatos sensatos, sapatos discretos, sapatos confortáveis, sapatos maltratados, sapatos sujos, sapatos demasiado engraxados, sapatos “da moda”, sapatos parolos, sapatos errados. E há sapatos com personalidade. A ciência é, claro, inexacta. Pode-se sempre, por exemplo por desespero ou distracção, comprara o sapato errado. O pior, o imperdoável, é usá-lo. O mau gosto, a mediocridade, a saloiice de alguém detectam-se, a velocidade do olhar, no que traz nos pés. É sempre o assunto mais sério de uma aparência, o que certifica ou estilhaça tudo. Claro que não depende só do sapato: quem o calça e como o calça, a forma como a relação se estabelece, também importa. Diga-se apenas que ali se concentra tudo, ambições e franquezas, desvelos e fatalidades.

Durante séculos e sobretudo neste século houve uma quase impossibilidade de arbítrio nesta seriíssima matéria. Os sapatos disponíveis eram de um determinado modelo, as variações minimais e ninguém ousava transgredir. O direito de opção era uma miragem e detectar as latitudes ofício de detective. Como um colete de forças, os modelos vigentes certificavam o espírito da época. Da agressividade futurista dos anos cinquenta, expoente absoluto do calçado feminino, a um tempo altar e mutilação com os seus saltos agulha e as sua biqueiras de foguetão lunar, à explosão de cores plásticas dos anos sessenta com as suas formas patuscas de sapatos de criança glorificando o advento da juventude, ao recorte alienígena dos compensados anos setenta, a História declina-se.

Hoje a variedade é infinita – mesmo se o mercado português contradita a asserção – e o passado interminável fonte de assemblages. Entre a divina tortura anos cinquenta e o humor saltitante dos Nikes sapateiam todas as virtualidades. Das esculturas misóginas de Manolo Blanik ao streetwise Patrick Cox aos chanatos de Xully Bet, é saber encontrar.

No ouro dia estive em arrumações e encontrei três ou quatro pares de botas feitas pelo senhor Policarpo, mais uns tantos pares de sapatos. As primeiras botas, aquelas, foram para o lixo de tão requisitadas e a cópia que depois lhe mandei fazer já não soube ao mesmo. É que não dura sempre. Numa época é aquilo, depois é outra qualquer. Mas são sempre botas e sempre pretas e mesmo no Verão a coisa certa para uma emergência. Umas vezes pontiagudas, outras redondas. Ou quadradas.

Ou de verniz, camurça ou cabedal, lisas ou gravadas, altas ou baixas, de salto fino ou grosso, curtas ou pelo joelho, com elástico ou com fecho.

Cada uma um passo além ou aquém  do modelo certo. Nunca exactamente aquilo, sempre qualquer coisa de menos. Um pormenor. Um grau menos na inclinação, um centímetro mais no salto, um milímetro mais na biqueira. Qualquer coisa.

Agora que já não tenho um senhor Policarpo, há que fazer com o que aparece. E o que aparece quase nunca corresponde.