Seja ela uma expressão da Arte, ou a formulação de uma prática (de uma linguagem) que propõem um critério, e uma estética, específicas a um certo universo de compreensão, a fotografia nunca equivale à realidade.
Muito do seu poder e do seu fascínio residem precisamente aí, nesse instante onde somos levados a supor uma relação mimética com algo que nunca chegou, realmente, a existir.
Estamos, pois, perante um discurso razoavelmente circunscrito a um conjunto de temas, de ideias, aglutinados por
uma prática cujo significado desvela a realidade tal e qual ela (a) parece. Entre a formulação destas intenções e a obtenção de um resultado – a definição das imagens – há uma quantidade incrível, de tentativas, de simulacros.
E sempre o desejo que se fotografa. Pelo menos, isso é válido para esta exposição de Asle Svarverud, que nos deixa a sós com algumas imagens. Elas tocam o limiar de certas paisagens, distantes deste lugar. onde hoje as imaginamos.
O fotógrafo (este fotógrafo) é alguém que explora coincidências, medita indícios, procura saber a razão de alguns fragmentos, ou da grandiosidade infindável da própria natureza.
Talvez nem sequer fosse necessário que estas imagens tivessem quaisquer legendas, que identificassem os locais a dizem respeito. Porque esses locais, que a maioria de nunca visitámos, constituem-se aqui como alibis. Uma jusficação para provar (provocar) coincidências entre factos entre olhares, entre mostrar e penetrar na opacidade, e revelar ainda os valores irredutíveis dessa mesma opacidade.
E por isso que me apetece ver estas fotografias como um fingimento. Elas levam-nos para um desconhecido que jamais chegaremos a temer. Resguardam-se numa espécie de nostalgia involuntária, que, em última análise, nem sequer nos :diz respeito. Esta, é do âmbito do fotógrafo, dos seus instrumentos, da câmara escura com ‘os seus ecos, da paisagem com os seus exploradores …
A primeira constatação a fazer respeita a uma sensibilidade.
Quem guarda assim estas imagens é porque gosta muito delas.Há que tentar saber até onde vai esta busca puramente pessoal, e onde começa o «atrevimento» dos espectadores desmentirem as implicações biográficas, ao despertarem para estas águas, para as montanhas, para os barcos, para a neve.
com um olhar estrangeiro … Há que saber o que acontece no atribulado instante da posse.
No fundo, a hipótese aqui formulada é a de um desvio. Trata-se de afastar as intencionalidades, de recusar uma experiência cujos códigos, cujos testemunhos, possam parecer apenas uma «curiosidade». Importa justamente fazer nascer a curiosidade sobre estas fotografias de Asle Svarverud. Só ela nos poderá conduzir aos itinerários destas viagens. A sua extensão é difícil de calcular, situa-se além dos projectos geográficos. A relação com a Natureza (quando ocorre) deve-se ao facto do fotógrafo aspirar a uma certa intemporalidade,
Assim se configura um «rosto» que resiste a sucessão dos reflexos, à passagem das manchas de luz, à própria matéria solar …
Aparecendo-nos com a carga simbólica de fotografias onde a temática obedece aos imperativos da paisagem, ao espaço da pura exterioridade (uma quase ausência de personagens, a inexistência de referências urbanas, etc …), estes trabalhos não se confundem com um olhar banalizado sobre aquilo que
rodeia o único personagem que aqui se pode adivinhar (naturalmente o próprio fotógrafo). Elas possuem o seu próprio critério para situar o mundo interior que lhes confere uma lógica, e o mundo exterior que lhes define uma função e um destino. A beleza que nos chega nunca é fortuita, mas
consequência do esforço do autor. O seu olhar apreende tudo o que transparece sobre a calma.
O que fica, é sugestão de um itinerário que vai tecendo a sua própria solidão. Torna-se legítima a aproximação deste discurso às deambulações de um viajante que só nos quer deixar, dos seus movimentos, as imagens que ele próprio foi capaz de interiorizar. Não há precipitações nem acasos felizes, nem encenações subjugadas à inteligência da câmara. Talvez por isso nos fique uma certa sensação de naturalidade. Tudo podia ser exactamente assim… E no entanto, ao demorarmos, gostamos de imaginar uma história. Porque nenhuma imagem é inocente, por mais plausível que seja a sua fusão
no «modelo» que a suscitou.
Pode ainda tirar-se outra conclusão destas dezenas de fotografias de Asle Svarverud: nenhuma paisagem é demasiado sensata. A nitidez funciona aqui como uma espécie de contrato com o viajante e com o espectador.
A fotografia está para além de nós próprios, tornou-se uma arte demasiado sensível e cobiçada. São muitíssimos aqueles que a disputam, e não será menor o número dos que se servem dela para influenciar decisões e consciências. Mas são poucos aqueles que, ao assumirem-se como fotógrafos, o fazem na concordância com uma ética, e até, frequentemente com um ideal.
Caberiam aqui algumas suposições românticas sobre este «género» concreto de fotografia a que o presente texto se reporta, abrindo caminho a especulações centradas na vertigem desenfreada deste
olhar que se fixa, que joga com as aparências, que lhes escapa …
Nada do que aqui vemos é compatível com a ilustração dos sentimentos. O que importa, neste processo de suposições é que, como escreveu Frederíco Leopoldo de Hardenberg, dito Novalis, «todo o objecto amado é o centro de um paraíso».
Ao meditar nesta exposição, veio-me à memória uma fotografia a que assisti. Era um pôr de sol no Sara Ocidental, a alguns quilómetros de Layoune: um fotógrafo coloca uma rapariga (uma criança) no
seu ângulo de visão. Recortados entre o infinito das dunas, ambos estavam mergulhados no maior dos silêncios. Não cabia qualquer palavra. Era uma progressão controlada dos afectos. As consequências, só podiam implicar os instantes de sucessivas fotografias. Que por sua vez nunca caberão num postal ilustrado. Mas era preciso estar ali, envolvido por aquele desejo, para ter essa certeza. Nenhuma das fotografias me deu a memória daquele momento, ou foi capaz de curar a ferida suave em que tudo aquilo se tornou.
E por isso que se torna imprescindível seguir as intuições, recuar até à altura em que o autor fez suas cada uma das imagens, à custa de precauções e preocupações que já só podemos perceber mediatizadas por um «suporte».
Num dos mais importantes testemunhos de um fotógrafo – o de Gérard Castello Lopes sobre «Fotografia e Responsabilidade» – aquele notável artista afirma: «Na sua essência a fotografia é o registo de um olhar. Todos sabemos até que ponto um olhar perscrutante e demorado se pode tornar incomodativo, ser lido como desafio, agressão, provocação e tornar-se a breve trecho intolerável. O olhar atraiçoa, vasculha, revolve, revela».
E bem possível que deste conjunto resulte uma forma de “catalogação” a que poderíamos chamar “álbum”. Seria convocar a dimensão de uma certa privacidade, a vocação pessoal que encontrava os seus prazeres e obesessões. Algum desafio atravessa esta possibilidade.
Asle Svarverud sabe geri-la como ordenação utópica de “recordações” que os espectadores podem surpreender, por oposição a outras paisagens e a outras vidas.
(reproduzido do catálogo de Asle Svarverud – Fotografias)
Eduardo Paz Barroso