Papel de Parede

Exposição de Joana Vasconcelos, José Loureiro, Miguel Soares, Pedro Proença, Xana.
Curadoria de João Pinharanda.

João Lima Pinharanda

Lisboa

18 de Junho de 1997

Papel de Parede

O título não é descritivo. É o revestimento formal de um conceito. O resultado da exposição – as obras/artísticas apresentados e a sua montagem – não é exaustivo nem ilustrativo. É como que um fragmento (uma “décollage”) de realidades capaz de assinalar, desde já, a multiplicidade de linguagens em presença e que deve ser visto como uma primeira e incompleta abordagem ao tema.

O assunto da exposição tem a ver com “padrão” e com “padronização”, desenvolvimento serial e com vocação decorativa. Nesse sentido tem a ver com uma linha fundamental da expressão artística da humanidade que vem da cerâmica pré-histórica ao design de interiores, do mosaico ou dos frescos romanos aos tecidos para gravatas, do “entrelac” céltico aos padrões das tapeçarias persas, das sedas “ricailles” para forrar as paredes aos fundos de Van Gogh, Gaugin ou Klimt, dos papéis humorados de Warhol (com vacas ou mãos) às angustiantes paisagens desdobradas de Gober, da abstração Op à “patern painting”.

O tema é de desenvolvimento complexo e impossível de definir linearmente, implica a história da arte e a psicologia da arte, mobiliza a história do gosto e a sociologia.

A ideia desta exposição surgiu ao mesmo tempo que se definia o projecto “Acabamentos de luxo” (Associação dos Arquitectos Portugueses, Lisboa, 1994). Tratava-se aí, claramente, de convocar artistas e obras capazes de recolocarem a questão da relação social entre a arte (pintura, escultura, arquitectura, instalação) e a domesticidade (design, decoração, cultura de “bricolage”, condições globais de habitação, etc).

Não há realmente, na presente selecção, nenhum “papel de parede” no sentido técnico associado ao termo, ou seja: faixas de papel, repetindo um desenho produzido em série, industrialmente, e coladas paralelamente sobre o suporte do muro simulando uma continuidade artificial entre cada unidade. O tema desta mostra deve contextualizar-se como comentário aos efeitos de decoração e “bricolage” na sociedade actual – o título funciona assim como um motivo formal mas também como uma ironia, uma peça de humor capaz de convocar uma visão crítica sobre a erudição do design ou dos movimentos que preconizaram a integração das diferentes artes (de Morris à Secessão ou da Bauhaus ao cinetismo Op) e sobre a prevalência do “kitsch” no consumo cultural dos públicos actuais.

Ao, mesmo tempo que retoma as linhas temáticas do trabalho de “Acabamentos de luxo” a presente exposição aproxima-se mais conscientemente de problemáticas estritas da história da arte – precisamente por convocar um tema compositivo (o da padronização e da serialidade), uma solução visual (a da bidimensionalidade) e uma questão psicológica (a das modalidades da percepção); ou de questões estéticas – ao implicar na discussão maiores ou menores, a vocação vanguardista (não decorativa) do modernismo e todos os desvios inernos e externos a esse modelo ao longo do século que agora termina. A selecção de artistas aqui apresentados pretendeu ser diversificada e não criar uma visão unitária. A montagem conseguida funciona como comentário ao espaço doméstico original do edifício (uma casa de gosto “brasileiro”) e ao espaço galerístico actual, reforçando quer o sentido visual quer o sentido programático da exposição – que, em qualquer dos casos, é sempre desviante em relação ao título.

José Loureiro apresenta pinturas incluídas no longo processo de investigação que a pintura abstracta prossegue. Embora repitam entre si o que poderíamos considerar um padrão (bolas coloridas) e se disponham em faixa ao longo da parede, essas pinturas apresentam uma riqueza de variabilidade de cor e irregularidade de textura que desestabiliza a regularidade psicológica do padrão e nos aproxima mais de uma prática de repetitividade empírica e de uma sensorialidade matérica (a da própria parede pintada e repintada).

A imagem da pintura sobrepõe-se à do muro onde assenta, a pintura é autónoma dele, pode ser deslocada para outro local, disposta de outra maneira sem que a parede sofra mais do que uma pequena perfuração. Mas, antes do mais, é o dinamismo visual destas telas que garante às imagens uma recepção retiniana autónoma da própria matéria que as suporta.

Miguel Soares apresenta um vídeo. Os ecrãs tendem a tornar-se omnipresentes nas nossas ruas e nas nossas casas, tendem a aumentar de dimensão, a ocupa nelas mais espaço e a ocupar mais tempo de visão e atenção. As imagens, ficcionadas em movimentos nessas superfícies, tendem a substituir a observação directa do real e a substituir a função real janela por uma metáfora: para ver não é necessário olhar directamente um objecto ele é trazido até nós por meio de uma técnica diferida (no tempo e/ou no espaço) de difusão; o que se vê não tem sequer que ter existência real – os jogos citados aqui são ficções virtuais. A parede que fecha o cidadão ao seu exterior torna-se móvel e narrativa, recusa a estabilização idealizada da paisagem ilusionista (que muitos papéis temáticos desenvolveram nos anos 70: a montanha, a praia, a cidade, o Outono, a neve, etc.) ou a serialidade tradicional do padrão – ou apenas se utiliza deste em estruturas móveis, temporalizadas.  A imagem-vídeo é uma projecção que nos afasta do real. Mas aqui é de uma virtualidade crítica que se trata – as figuras/sons/ movimentos de Miguel Soares desmontam os mecanismos de que se constroem os discursos da indústria videográfica. Entre os trabalhos de Loureiro e os de Soares vai a distância de dois universos poéticos e tecnológicos – é significativo que ambos se possam reivindicar da mesma contemporaneidade.

Xana usa o padrão de um modo duplamente irreverente: porque o tridimensionaliza; e porque o faz deslocar de instalação em instalação numa atitude de reciclagem que pode ser completamente com o próprio facto da base do seu trabalho serem alguidares de matéria sintética, o plástico. Xana altera, conforme as circunstâncias, a malha de disposição das peças no conjunto, ocupando indiferentemente chão, tecto ou paredes. E comenta a própria peça com a introdução de pinturas ou de esculturas onde também trabalha sobre a ideia de cor, padrão desvio e ironia visual. Tal como em Loureiro as suas obras sustentam-se num dinamismo visual que garante ás imagens uma recepção retiniana autónoma da própria matéria que as suporta.

Joana Vasconcelos apresenta também uma peça tridimensionalizada. Não se trata da prática de uma ironia sistemática mas da criação de uma outra realidade. É isso que a leva a imaginar mobiliário impossível, de funcionalidade absurda, excessivo no seu design e nas finalidades simbólicas. Neste caso temos um sofá que não é sofá (porque há um vidro no lugar do assento), forrado com um tecido que não é tecido (porque foi substituído por embalagens de aspirinas). A aspirina é, de facto, um padrão universal (de cor/forma). E se esse padrão era originalmente não artístico (a sua função é terapêutica e não plástica) esta peça acaba por lhe conferir um novo ser apropriando artisticamente o medicamento. Tanto Xana como Joana Vasconcelos desenvolvem trabalhos que exploram as possibilidades de um comentário pós-Pop à actualidade, aos seus temas e materiais.

Pedro Proença é o único que apresenta rigorosamente obras cuja matéria e dimensões as aproxima dos rolos de “papel de parede”. Porém, os desenhos de Proença não são realizados em papéis colantes, nem são mecanicamente realizados, nem se solucionam segundo estratégias de padronização. Os rolos agrafam-se à pistola sobre as paredes e percebe-se o trabalho manual do pincel sobre a sua textura pesada.

Poderiam vir a ser projectos de “papel de parede”. Mas, apresentados assim, antes acrescentam o trabalho de comentário irónico que o autor exerce a partir de temas eruditos desviados sobre as modalidades de diálogo do desenho e da pintura com tempo e a arquitectura.

Não esqueçamos que o objecto prático do “papel de parede”, no cumprimento da sua tradicional função decorativa, é o de esconder a parede, criar uma segunda realidade (uma pele ou película) sobre a realidade do suporte parietal, sugerir um “trompe I’oeil”, decorar uma superfície envelhecida, desagradavelmente pintada ou simplesmente demasiado nua para o gosto ou necessidades do proprietário. As obras aqui reunidas situam-se para além desse destino doméstico – não escondem nada, revelam tudo; não vivem um destino decorativo vivem um tempo de comentário.

Ana Vaz Milheiro

Novembro de 1997

Papéis

Que o papel de parede tenha surgido como um elemento de substituição dos tecidos que revestiam as paredes dos interiores palacianos, não é factor depreciativo. Também essas sedas estampadas, esses adamascados sofisticados substituíram em tempos uma tapeçaria mais rude que caracterizou os ambientes medievais. Foi então, mediante um processo de substituição que os papéis se impuseram nos interiores domésticos acabando por formalizar um tipo de decoração que o século XIX cultivou e que o sequenta acabaria por desvalorizar. O papel de parede tem assim percorrido um trajecto sinuoso no domínio do gosto, dividido entre a afectividade e o desdém: como se delimita esse universo? “Bom-Gosto no Desenho, Senhores (e creyo que em tudo) consiste na justa conformidade que as cousas tem com a sua destinação; sem faltar-lhe o preciso, nem conterem o supérfluo” (Machado de Castro; 1788, p.17). Não existe, é certo qualquer hipótese de arbitrariedade para o seu exercício como sabia já o homem setecentista, condição que em oitocentos se completa numa definição de princípios se “Le goût (…) est encore le respect pour le vrai” (Viollet-Duc; 1979, p.168).

O gosto insere-se assim numa esfera de comportamento resguardada por um juízo de valor. Não se esgota na perspectiva das Belas Artes, mas integra o mundo das artes aplicadas e por isso pertence ao quotidiano, o domínio privilegiado do papel de parede.

Quando o século XIX recuperou as artes decorativas como intervenção indissociável do objecto arquitectónico, num intuito de unidade entre espaço externo e interno, impôs sobre estas as normas que aplicava sobre a prática da arquitectura: “That the external and internal appearance of na edifice should be illustratrive of, and in accordance with, the purpose for which it is designed” (Pugin, cit. Por Atterbury, 1996, p.177). A arquitectura distanciara-se já da pintura e da escultura num movimento de especialização, que não se justifica apenas pela tendência industrializante que se vivia. Antes revela um autonomia crescente dos objectos artísticos em relação as espaço (cénico) que a arquitectura lhes proporcionara anteriormente e do qual eram parte indivisa. E se a arquitectura se inclinou para essas tais artes menores ao imobiliário, serralharia, cerâmica têxteis… se foi num impulso de renovação do sentido e do uso do espaço, explorando as hipóteses que estas poderiam conter numa composição espacial que as integrasse. A atitude não seria alheia a uma maior massificação da própria encomenda: “If I were asked to say what is at once the most important production of Art and the thing most to be onged for I should answer, a beautiful House… “ (Morris, cit. por Parry; 1996, p.136). Numa sociedade empenhada em promover uma qualidade de vida alargada a um número significativo da população se como ideologicamente se manifestou a oitocentista se, o papel de parede encontrou um público e consequentemente uma indústria capaz de compreender as suas potencialidades comerciais. Vulgarizou-se, portanto. Todavia não abandonou a discussão estilística que abrangeu os outros campos artísticos. Pelo contrário, serviu os propósitos de uma cultura apostada em revisitar nostalgicamente o passado (Argan, 1977, p.p.7-28) pois neste processo residiu o discurso que possibilitou a valorização do indivíduo e consequentemente a recuperação ampla das artes aplicadas como meio de favorecer a acessibilidade ao mundo da arte. Mas, esta dependência do passado que parece animar a cultura oitocentista, não constituiu mais do que um pretexto para a definição de uma metodologia criativa. Na verdade, o século XIX beneficia de disposições que se consolidam anteriormente: um sentido normativo que universaliza as noções que definem os vários estilos históricos, um exercício activo de uma arqueologia que valida a prática artística, uma crença no individuo e nas suas opções estilísticas. A tendência de uniformização da arte ocidental era assim irreversível apesar dos enunciados nacionalistas que o debate sobre os esquemas possíveis de desenho alimentou.

Dentro deste panorama se desenvolve a arquitectura e as artes suas subsidiárias, ou sejam, aquelas que proporcionam a harmonia esperada do objecto e que reforçam o carácter comunicativo que este deve propagar. Numa perspectiva funcional, o papel de parede deve restringir-se ao tema geral a que o edifício obedece, deve então responder inequivocamente à veracidade do estilo no qual se inspirou. Note-se que a recuperação do passado não correspondeu a uma reprodução minimalista das fontes, mas a uma recriação ideal e fantasiada resultante da apreensão do seu significado. As incursões a que este processo investigativo obrigou geraram pelo menos duas aplicações paralelas do sistema revivalista: uma utilização apoiada na imediata visibilidade dos vocábulos estilísticos introduzidos com consistência compositiva (afastando-se de um universo ecléctico) e uma formulação do estilo puro no sentido da sua coerência formal e primitiva. Os sistemas de desenho resultantes anunciavam uma extrema liberdade de escolhas, que acabariam por se fixar num sistema axial traçado entre o clássico e o não clássico (Gombrich, 1984, p.187). Rapidamente, contudo, admitiram sistematizações mais precisas como o egípcio (ocidental, por via de uma assimilação imperial romana), o gótico ou o japonês, o último, numa abertura simultânea aos universos não europeus. Neste debate alargado sobre a autenticidade do estilo e a sua adequabilidade no presente, os conceitos integrariam maior objectividade no tratamento do tema, introduzindo classificações de espectro cada vez mais reduzido. As formas do passado são neste contexto, suficientes para a criação artística, condição que liberta o artista de uma eventual exploração estéril caso se ocupasse de um domínio desconhecido: “Orginality in expression does not depend on invention of new words; nos originality in poetry on invention of new measures, nos, in painting, on invention of new colours, or new modes of using them” (Ruskin, 1940, p.208).

O passado fornece os dados que o artista contemporâneo deve manipular com intencionalidade. Intenção essa, que sendo atributo indispensável a qualquer objecto de arte, determina exemplarmente as condições de eleição de um tipo estilístico, aumentando as hipóteses de sucesso de uma escolha dirigida. E por se situar na esfera da emotividade, permaneceu essa selecção do foro particular. Dividida entre a uniformização representada pela hierática ordem grega se ou clássica se e a variedade reconhecida principalmente na obra medieval (Ruskin, The Nature of Gothic, Changefulness, pp. 157-165). É portanto através da visibilidade alcançada pelo passado no tempo presente, que o artista exerce com liberdade o seu poder de opção. Este gesto estende-se a todos os componentes da obra arquitectónica, os quais são interpretados e concebidos segundo o mesmo método introspectivo. Difude-se a análise consciente dos vários significados contidos pelos elementos que constroem a obra com vista a um uso correcto no desenho e inviabilizando o efeito provocado por uma operação artificial se “there should be no feature about a building which are not necessary for convenience, construction or propriety” (Pugin, 1841, p.1). É neste universo que se admite, ou melhor, se propaga o papel de parede como parcela cooperante no resultado final do espaço. Não pervalece a sua condição acessória se como seria numa perspectiva subsidiária do movimento moderno se mas a carga emocional que é capaz de exercer sem subterfúgios visuais.

Cumpre por isso a segunda lei pugiana “that all ornament should consist of enrichment of the essential construction of the building” (1841, p.1). Esta perspective decorativa e nunca formalista, preside à sua inclusão, tanto nos ambientes domésticos como nos de vacação pública. Assiste-se a uma reinvenção contínua dos interiores nos quais os arquitectos se inspiram, pois “a panel or a Wall may be enriched and decorated at pleasure, but it should always be treated in a consistent manner” (Pugin, 1841, p.29). O papel de parede beneficia então do tempo revival, mas também o cumpre uma vez que assimila os seus princípios como propriedade intrínseca ao seu uso no espaço. Não é somente um meio de sofisticação porque se comporta como elemento estruturante e não adicional ou justaposto. Assim está apartado de qualquer superficialidade que o possa conotar com um exercício de gosto duvidoso.

O primeiro ponto, trata portanto da metodologia de concepção que segue a prática revivalista que valoriza a sua existência, sem se desviar, por essa razão, da veracidade reclamada para outra actividade artística: “Flock papers are admirable substitutes for the ancient hangings, but they must consist of a pattern without shadow, with the forms relieved by the introduction of harmonious colours” (Pugin; 1841, p.30). Obedece a disposições regulamentares de desenho. Este não pode perturbar a leitura crível do espaço, por isso, jamais deve iludir o observador através da inclusão de elementos representados tridimensionalmente e capazes de concorrem com a direcção cambiante da luz (Gombrich, 1979, p.34). Qualquer interpretação contrária invalida a especificidade do seu uso. É então no âmbito de uma utilização concordante com o significado de plano parietal que o papel surge, recusando a velha técnica trompel’oeil divulgada na pintura mural, e que os homens do século XIX rejeitaram pela sua natureza ludibriante.

O passo seguinte prende-se em encontrar uma fonte verosímil de inspiração para uma invenção que não deixa de ser moderna: “llluminated manuscripts of the thirteenth, fourteenth, and fifteenth centuries would furnish na immense number of exquisite designs for this purpose” (Pugin, 1841, p.30). Manifesta-se assim uma adesão estilística, com a mesma exactidão com que seria enunciada caso se tratasse de uma obra de arte. Mas será isso que representa? Ou melhor, pode o papel ser interpretado segundo uma óptica que o afasta do espaço? Essa condição será pouco provável no mundo do século XIX. A recorrência a um padrão repetido demonstra a sua condição espacial. O desenho impresso no papel de parede não concentra a atenção nas acentua uma distribuição equivalente pelos diversos componentes que compõem o espaço e que se dividem em peças de mobiliário, tecidos ou pequenos objectos de uso corrente. Ao libertar-se de um sistema revivalista o papel de parede mantém porém a sua consistência. Com William Morris invade definitivamente os imaginários da classe média por admitir outros assuntos temáticos, ainda que correspondendo a um apuramento dos propósitos pugianos: “Our wallpapers… are simply fillings: they imitate no architectual features, neither dados, friezes, nor angles” (Morris, cit.por Hoskins; 1996, p.204). Prossegue a intenção em conferir integridade ao espaço e por isso algumas normas são sugeridas como a impossibilidade de conjugação de padrões distintos (com algumas excepções) ou o preenchimento do tecto evitando-se assim um protagonismo exarcerbado que contrarie o seu senso de conveniência (Hoskins; 1996, pp.198-205). Contudo, a produção morris se fabricada sem auxílio de maquinaria pesada, reflexo da sua herança ruskiana se alcançou um atributo de objecto identificável, o que parece inverter a sua aparente neutralidade, colocando o terceiro ponto de discussão em relação ao significado contido em si. Trellis (1862), Daisy (1864), Pomegranate (1866), Indian (1868-1870), Diaper (1868-1870), Larkspur (1870s), Jasmine (1872), Vine (1874), Lily (1874), Acanthus (1874), Pimpernel (1876), Sunflower (1877-1878), Pink and Poppy (1880), St. Jame’s (1880), Bird and Anemone (1882), Wild Tulip (1884), Chrysanthemum (1886), Willow Bough (1887), Bruges (1888), Grafton (1883) se constituem um mundo autónomo que William Morris involuntariamente constrói com os seus desenhos. A dois tons ou compreendendo uma rica policromia, os padrões morris retomam uma inspiração vegetalista que gradualmente se afasta da fonte medieval.

Investigam ainda as possibilidades forma-fundo em linhas cada vez mais extasiantes, indicando outros percursos plásticos possíveis para o final dó século. Permanecem até hoje em reedições constantes que gradualmente enfraquecem o sentido original que os motivou. Começam, todavia, por participar inconscientemente no domínio ecléctico do princípio do século, ao qual afluem diferentes proveniências estilísticas, sem a restrinção que o revivalismo defendera.

O papel de parede não representa no universo morris uma excepção constitui apenas uma parcela das diversas áreas onde a sua famosa firma se lançou, num intuito amplo de reforma das artes decorativas inglesas: “And then from simplicity of life would rise up the longing for beauty, which cannot yet be dead in men’s soul…” (Morris; 1996, p.96). O projecto traçado inclui um estracto social que paradoxalmente jamais deterá poder aquisitivo para os bens artísticos comercializados pela Morris & Comp. Todavia o papel será um dos seus campos de maior sucesso, até pela popularidade que alguns dos padrões atingiram, acabando por gerar réplicas que comprometeram a sua autenticidade futura. Prestavam-se à imitação fácil e como tal, foram fabricadas colecções sucedâneas recorrendo a processos contrários aos que Morris sempre defendera: 2For Arts breeds Arts, and every Worthy Work done and delighted in by the maker and user begets a longing for more: and since art be fashioned by mechanical toil, the demand for intelligent work, which if persisted in willin time create its due suply se at least Ihope so” (Morris, 1996, p.94).

Neste processo a sua aplicação diluiu-se em reproduções cada vez manos inventivas.

A repercussão dos papéis morris contribui para gerar uma tendência de utilização apoiada num fénomeno decorativista distante do uso conveniente que o transformara num atributo valorativo. Criou-se assim uma necessidade externa ao espaço e não inerente à sua existência viva. Sem o suporte estrutural que detivera nos momentos revival e arts and crafts, o papel metamorfoseou-se num preenchimento de uma superfície sem outras implicações que ultrapassassem a esfera do agradável. Todavia uma agradabilidade diversa do prazer que John Ruskin evocara como reflexo da beleza (Modern Painters, 1943,p.18).

Apoiadas em Adolf Loos, as vanguardas novecentistas não hesitaram em retirar o ornamento do espaço, como se este se tratasse de um adereço cenográfico e por isso destituído de função.

Desconfiaram das potencialidades sugestivas que transportava. Eram já obsoletas as leituras de um espaço capaz de sugerir emoções pela disposição simbólica das suas propriedades formais. Neste universo o papel de parede revela-se inócuo: “Podemos dizer, ao observarmos a história recente (…), que o Movimento Moderno, com a sua declarada aversão à decoração e aos ornamentos, pretendia fazes destacar a novidade geradas pela tecnologia no século XIX, a capacidade sem precedentes de controlar a estrutura dos objectos.

Retirar importância à superfície e às mensagens que ela pode veicular era resultado da vontade de eliminar tudo o que pudesse funcionar como elemento perturbador da pureza geométrica das formas, que podiam, finalmente, ser produzidas e reproduzidas por máquinas. A pele das coisas, com a sua opacidade, bloqueada a visão da sua geometria perfeita e da sua essência funcional” (Manzini, 1993, pp.42-43). Enquanto mero revestimento parietal, o papel de parede não oferece uma coerência discursiva capaz de desenvolver as suas propriedades espaciais.

Reduz-se a um elemento somado, um excesso ruidoso. Como então justificar a procura que ainda detém? Talvez assim seja, porque se alimenta do passado: vive dos momentos que revolucionaram o seu uso, sem que entretanto se tenham acrescentado significados renovadores da sua função. Na verdade, carece de um modelo que o integre. E isto porque, ao procurar intervir no quotidiano, as vertentes puristas geradas no movimento moderno não conseguiram implantar um modelo convincente para os ambientes domésticos do século XX. Estes continuam a prospectar uma idade anterior presente nos imaginários contemporâneos e cultivada por práticas decorativas difundidas eficientemente, beneficiando de um gosto que se tornou voluntarioso. Num tempo em que os gostos se discutem (num âmbito plural anteriormente inaceitável) não existem parâmetros limitativos que desencorajem a produção de réplicas num contexto imaginativo aparentemente esgotado. Perante a exaustão visível do modelo original, os subsidiários não promovem um produto qualificado, antes diminuem as suas hipóteses de sobrevivência. Apesar disso o papel subsiste: tornou-se um objecto de desejo que transforma o espaço amorfo num ambiente ambicionado, ou melhor, simulado.

Com flores, riscas, estrelas ou palhaços, os padrões actuais do papel de parede não são mais que substitutos que cobrem superfícies vazias. Substituem o quê? Imagens de felicidade.